Vou começar com um tema triste e "bonito", ele me incentivou a essa volta espontânea e também de querer fazer mais, a querer compartilhar mais, a querer escrever mais e quem sabe tentar abstruir mentes sem suas capacidades mentais.
Esse texto foi publicada hoje na página, "Sociedade" da Carta Capital.
Quando a beleza dói
por Vivi Whiteman
O que leva adolescentes a espancar uma colega por ser
bonita?
Em seu livro “A História da Beleza” (2004), o sociólogo e
historiador francês Georges Vigarello traça um panorama de como a ideia do que
significa “ser bonito” mudou ao longo dos séculos.
Na conclusão de seu trabalho, Vigarello afirma que, no fluxo
das transições e características específicas das “belezas” de diferentes
épocas, os caminhos atuais estariam ligados a um sentimento geral, o da
conquista de um certo “bem-estar”. E é aí onde mora o bote da cobra.
“O mal-estar pode surgir como consequência onde o bem-estar
se impõe como critério final. O nosso mundo solta um lamento, instalando um
incômodo difuso, enquanto se consagra mais do que outros, e como nunca, em
promessa de beleza”, escreve ele. Mas o que isso quer dizer e o que tem a ver
com nossas experiências atuais com o conceito de beleza?
Nesta semana, uma jovem de 15 anos foi espancada por duas
colegas dentro da escola que frequentam no interior de São Paulo. Terminou com
um traumatismo craniano e um rosto cheio de hematomas. As agressoras já tinham
feito ameaças anteriores: queriam cortar os cabelos da moça, ela “pagaria” em
algum momento.
A menina, segundo testemunhas, incluindo seu próprio pai,
estaria provocando um certo desequilíbrio na turma pelo fato de ser bonita.
Colegas deram entrevistas dizendo que, além de gata, ela era também
“metidinha”, do tipo que “se acha”. Apanhar por ser bonita? Por “ostentar”
beleza? Pois é.
Voltamos a Vigorello. Se a “promessa do mundo” (ou seja, se
o sucesso de uma vida, de uma existência) pode ser alcançada via beleza,
se a beleza é uma das chaves para essa felicidade prometida, faz sentido que
uma novata cuja beleza chame a atenção não apenas cause inveja, mas seja vista
como uma verdadeira ameaça dentro de um grupo já formado. É uma questão de
dominação e poder.
É claro que a história das agressoras, seu perfil pessoal e
psíquico, ou seja, suas condições individuais, devem ser levados em conta nesse
caso. O que não quer dizer que o episódio não possa ser visto sob luzes mais
gerais.
Um dos alunos filmou a agressão. Os alvos principais são o
rosto e os cabelos. Não apenas Vigorello, mas tantos outros que já se
debruçaram sobre o assunto, identificam os traços faciais e os cabelos como
grandes focos de atenção femininos. Belos pares de olhos e madeixas bem cuidadas
já inspiraram canções, imagens e versos dos maiores gênios da música, da
pintura e da literatura.
Atualmente, continuam nos altares das megastores de
cosméticos e nos comerciais de TV e revistas. Um rosto sem rugas, sem marcas,
“maçãs” firmes, olhos de gato. Fios longos, hidratados, esvoaçantes, que a
atriz ou a modelo balançam na tela, hipnotizando a consumidora, envolvida numa
mentira sincera que ela adora levar pra casa toda vez que vai ao supermercado.
Rostos marcados, queimados, cabelos tosados como forma de
humilhação são abundantes não só na ficção como na realidade. E são castigos
tipicamente femininos. Não se trata da tortura em si, mas da marca da beleza
roubada.
Do culto ao rosto e à higiene chegando à beleza de e para
consumo do século 20 (considerando nesta última todas as mudanças trazidas pela
sistematização da moda e o império da chamada imprensa feminina), os contos da
beleza certamente têm personagens masculinos, mas são protagonizados por
mulheres. São elas, virgens, rainhas, santas, damas, estrelas de cinema,
intelectuais e periguetes o foco desse joguinho de amor e ódio.
Embora viva se esquivando de sua responsabilidade nesse
sentido – seja via silêncio seja via campanhas perversas que promovem o aumento
do pior tipo de competição passivo-agressiva, enquanto vendem sorrisos e
papinhos furados sobre diversidade –, a indústria da imagem de moda tem
depositado muita lenha nessa fogueira. E fatura ainda mais quando o circo pega
fogo.
O próprio Vigarello, já em 2004, quando o livro foi lançado,
fala sobre o outro lado da lorota das “escolhas individuais”, queridinha
absoluta do marketing hoje em dia.
A ciranda dupla da publicidade funciona primeiro num
sentido. Primeiro gira o discurso de que a tendência é escolher “o melhor para
você”, “ser quem você é”, "aceitar sua verdade" e todo tipo de
sedução libertadora. Mas o Lado B é outro. É nele que gira a ideia de que
existem vários caminhos, mas todos eles são regidos pelas mesmas exigências
finais. No fim do disco, é bom que você use o sistema que mais te “agrade” para
controlar seu peso, sua pele, seus cabelos, seus músculos etc.
Quem não apresenta os resultados esperados sente a porrada
da exclusão. Isso vale até mesmo para aquelas que chegam a lugares olímpicos
contemporâneos, como as capas de revista. A cantora Adele ou a atriz e
roteirista Lena Dunham podem até ganhar capas da “Vogue”, mas são fotografadas
em close ou do peito pra cima. São rostos aceitáveis, sustentados por feitos
intelectuais (cantar, fazer uma série de sucesso, etc), mas não são corpos
“apresentáveis” numa capa, espaços reservados para as silhuetas das magras.
Nos mitos gregos, as deusas arquitetavam vinganças das mais
violentas contra “azinimigas”. E essas inimigas não raro eram mortais tão belas
que os demais humanos ousavam compará-las aos seres divinos. Aparência é poder.
Indo mais longe, mesmo uma olhadinha na evolução e no mundo animal mostram a
verdade dessa afirmação.
Quando deslocamos esse tipo de conflito para um ambiente
como uma escola cheia de adolescentes, o quadro fica mais assustador do que o
habitat de feras (o filme teen “Meninas Malvadas” faz um ótimo trabalho
comparando uma “high school” com uma selva).
Meninas e meninos no auge da pipoca hormonal.
Superestimulados pela TV, pelas revistas, pelo noticiário de celebridades.
Competindo loucamente por atenção, viciados em exposição, celulares em punho.
Eis que aparece uma “ave” que se destaca pela beleza e por
se orgulhar dessa beleza, gostar de chamar a atenção, de usufruir do bem-estar
de corresponder ao padrão de sucesso estético. Não há nada de inocente aí:
existe um grande prazer envolvido, e esse prazer também inclui o gosto de estar
“acima” dos demais.
Do outro lado, porém, duas garotas que se sentem
“desfavorecidas”, realmente humilhadas por esse privilégio da colega, resolvem
reagir e eliminar a ameaça, submetê-la ao controle da força, já que perderam na
arena da beleza.
Controle, mais uma vez, aparece como palavra-chave. Ela está
inclusive nos rótulos de produtos: “controle de frizz”, “controle de oleosidade”,
“age control”, “damage control”, “celulite control” etc. E você, veja que
maravilha, é “livre” para escolher qual potinho de controle vai botar no
armário.
Evidente que nada justifica o espancamento, evidente que não
se deve arrumar desculpas furadas para defender as agressoras, nem fingir que
tudo não passou de uma briguinha infantil isolada. Pelo contrário. Elas devem
conhecer as consequências de seus atos, devem responder por eles. Mas isso não
basta.
Também não se trata do velho jogo de gritar com indignação e
apontar culpados. A ditadura da magreza, as editoras e suas divas made in
Photoshop, os padrões, todo mundo adora malhar os Judas de sempre. É um esporte
perverso, aliás, quase um passatempo que faz parte da própria indústria. As
próprias revistas que divulgam padrões depois os criticam. É uma fórmula e
tanto.
Talvez seja o caso de examinar, como aconselha Vigorello, os
mecanismos de narração dessa história da beleza contemporânea. Ou seja, quem é
que conta essa história, quem é o dono do roteiro?
Mas como identificar os autores e redistribuir os papeis de
uma maneira menos cínica? A resposta passa pela educação e também pela escola.
Vaidade e beleza (e suas relações com a ideia de poder) são
assunto para filósofos e outros pesquisadores desde o mundo Antigo. São também
temas sérios para empresários e seus empreendimentos, dos bilionários da beleza
aos magnatas da mídia. No entanto, nas casas e escolas, pontos de maior
atrito da vida social, são tratadas como temas menores, como besteira, simples
questão de consumismo ou mera futilidade, como "conversa de mulherzinha".
E quando a pressão explode na carne de meninas de 15 anos,
os adultos covardemente se perguntam “Oh, estaríamos de volta à Idade das
trevas?”, “Oh, de onde vem tanta selvageria?”. A resposta está logo ali,
do outro lado do espelho. Que tal dar uma olhadinha?