Mostrando postagens com marcador Textos de Outros Blogs. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Textos de Outros Blogs. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Quando a beleza dói

Por mais de um ano fiquei sem atualizar o meu blog (isso me doeu muito), hoje resolvi voltar e com tudo, vou continuar! Desde já, peço desculpas a todos, se é que terei algum seguidor depois de tanto tempo sem atualização
Vou começar com um tema triste e "bonito", ele me incentivou a essa volta espontânea e também de querer fazer mais, a querer compartilhar mais, a querer escrever mais e quem sabe tentar abstruir mentes sem suas capacidades mentais.
Esse texto foi publicada  hoje na página, "Sociedade" da Carta Capital.



Quando a beleza dói

por Vivi Whiteman 

O que leva adolescentes a espancar uma colega por ser bonita?


Em seu livro “A História da Beleza” (2004), o sociólogo e historiador francês Georges Vigarello traça um panorama de como a ideia do que significa “ser bonito” mudou ao longo dos séculos.

Na conclusão de seu trabalho, Vigarello afirma que, no fluxo das transições e características específicas das “belezas” de diferentes épocas, os caminhos atuais estariam ligados a um sentimento geral, o da conquista de um certo “bem-estar”. E é aí onde mora o bote da cobra.


“O mal-estar pode surgir como consequência onde o bem-estar se impõe como critério final. O nosso mundo solta um lamento, instalando um incômodo difuso, enquanto se consagra mais do que outros, e como nunca, em promessa de beleza”, escreve ele. Mas o que isso quer dizer e o que tem a ver com nossas experiências atuais com o conceito de beleza?


Nesta semana, uma jovem de 15 anos foi espancada por duas colegas dentro da escola que frequentam no interior de São Paulo. Terminou com um traumatismo craniano e um rosto cheio de hematomas. As agressoras já tinham feito ameaças anteriores: queriam cortar os cabelos da moça, ela “pagaria” em algum momento.


A menina, segundo testemunhas, incluindo seu próprio pai, estaria provocando um certo desequilíbrio na turma pelo fato de ser bonita. Colegas deram entrevistas dizendo que, além de gata, ela era também “metidinha”, do tipo que “se acha”. Apanhar por ser bonita? Por “ostentar” beleza?  Pois é.


Voltamos a Vigorello. Se a “promessa do mundo” (ou seja, se o sucesso de uma vida, de uma existência)  pode ser alcançada via beleza, se a beleza é uma das chaves para essa felicidade prometida, faz sentido que uma novata cuja beleza chame a atenção não apenas cause inveja, mas seja vista como uma verdadeira ameaça dentro de um grupo já formado. É uma questão de dominação e poder.


É claro que a história das agressoras, seu perfil pessoal e psíquico, ou seja, suas condições individuais, devem ser levados em conta nesse caso. O que não quer dizer que o episódio não possa ser visto sob luzes mais gerais.

Um dos alunos filmou a agressão. Os alvos principais são o rosto e os cabelos. Não apenas Vigorello, mas tantos outros que já se debruçaram sobre o assunto, identificam os traços faciais e os cabelos como grandes focos de atenção femininos. Belos pares de olhos e madeixas bem cuidadas já inspiraram canções, imagens e versos dos maiores gênios da  música, da pintura e da literatura.


Atualmente, continuam nos altares das megastores de cosméticos e nos comerciais de TV e revistas. Um rosto sem rugas, sem marcas, “maçãs” firmes, olhos de gato. Fios longos, hidratados, esvoaçantes, que a atriz ou a modelo balançam na tela, hipnotizando a consumidora, envolvida numa mentira sincera que ela adora levar pra casa toda vez que vai ao supermercado.


Rostos marcados, queimados, cabelos tosados como forma de humilhação são abundantes não só na ficção como na realidade. E são castigos tipicamente femininos. Não se trata da tortura em si, mas da marca da beleza roubada.


Do culto ao rosto e à higiene chegando à beleza de e para consumo do século 20 (considerando nesta última todas as mudanças trazidas pela sistematização da moda e o império da chamada imprensa feminina), os contos da beleza certamente têm personagens masculinos, mas são protagonizados por mulheres. São elas, virgens, rainhas, santas, damas, estrelas de cinema, intelectuais e periguetes o foco desse joguinho de amor e ódio.


Embora viva se esquivando de sua responsabilidade nesse sentido – seja via silêncio seja via campanhas perversas que promovem o aumento do pior tipo de competição passivo-agressiva, enquanto vendem sorrisos e papinhos furados sobre diversidade –,  a indústria da imagem de moda tem depositado muita lenha nessa fogueira. E fatura ainda mais quando o circo pega fogo.


O próprio Vigarello, já em 2004, quando o livro foi lançado, fala sobre o outro lado da lorota das “escolhas individuais”, queridinha absoluta do marketing hoje em dia.


A ciranda dupla da publicidade funciona primeiro num sentido. Primeiro gira o discurso de que a tendência é escolher “o melhor para você”, “ser quem você é”, "aceitar sua verdade" e todo tipo de sedução libertadora. Mas o Lado B é outro. É nele que gira a ideia de que existem vários caminhos, mas todos eles são regidos pelas mesmas exigências finais. No fim do disco, é bom que você use o sistema que mais te “agrade” para controlar seu peso, sua pele, seus cabelos, seus músculos etc.


Quem não apresenta os resultados esperados sente a porrada da exclusão. Isso vale até mesmo para aquelas que chegam a lugares olímpicos contemporâneos, como as capas de revista. A cantora Adele ou a atriz e roteirista Lena Dunham podem até ganhar capas da “Vogue”, mas são fotografadas em close ou do peito pra cima. São rostos aceitáveis, sustentados por feitos intelectuais (cantar, fazer uma série de sucesso, etc), mas não são corpos “apresentáveis” numa capa, espaços reservados para as silhuetas das magras.

Nos mitos gregos, as deusas arquitetavam vinganças das mais violentas contra “azinimigas”. E essas inimigas não raro eram mortais tão belas que os demais humanos ousavam compará-las aos seres divinos. Aparência é poder. Indo mais longe, mesmo uma olhadinha na evolução e no mundo animal mostram a verdade dessa afirmação.


Quando deslocamos esse tipo de conflito para um ambiente como uma escola cheia de adolescentes, o quadro fica mais assustador do que o habitat de feras (o filme teen “Meninas Malvadas” faz um ótimo trabalho comparando uma “high school” com uma selva).

Meninas e meninos no auge da pipoca hormonal. Superestimulados pela TV, pelas revistas, pelo noticiário de celebridades. Competindo loucamente por atenção, viciados em exposição, celulares em punho.


Eis que aparece uma “ave” que se destaca pela beleza e por se orgulhar dessa beleza, gostar de chamar a atenção, de usufruir do bem-estar de corresponder ao padrão de sucesso estético. Não há nada de inocente aí: existe um grande prazer envolvido, e esse prazer também inclui o gosto de estar “acima” dos demais.


Do outro lado, porém,  duas garotas que se sentem “desfavorecidas”, realmente humilhadas por esse privilégio da colega, resolvem reagir e eliminar a ameaça, submetê-la ao controle da força, já que perderam na arena da beleza.


Controle, mais uma vez, aparece como palavra-chave. Ela está inclusive nos rótulos de produtos: “controle de frizz”, “controle de oleosidade”, “age control”, “damage control”, “celulite control” etc. E você, veja que maravilha, é “livre” para escolher qual potinho de controle vai botar no armário.


Evidente que nada justifica o espancamento, evidente que não se deve arrumar desculpas furadas para defender as agressoras, nem fingir que tudo não passou de uma briguinha infantil isolada. Pelo contrário. Elas devem conhecer as consequências de seus atos, devem responder por eles. Mas isso não basta.

Também não se trata do velho jogo de gritar com indignação e apontar culpados.  A ditadura da magreza, as editoras e suas divas made in Photoshop, os padrões, todo mundo adora malhar os Judas de sempre. É um esporte perverso, aliás, quase um passatempo que faz parte da própria indústria. As próprias revistas que divulgam padrões depois os criticam. É uma fórmula e tanto.


Talvez seja o caso de examinar, como aconselha Vigorello, os mecanismos de narração dessa história da beleza contemporânea. Ou seja, quem é que conta essa história, quem é o dono do roteiro?


Mas como identificar os autores e redistribuir os papeis de uma maneira menos cínica? A resposta passa pela educação e também pela escola.


Vaidade e beleza (e suas relações com a ideia de poder) são assunto para filósofos e outros pesquisadores desde o mundo Antigo. São também temas sérios para empresários e seus empreendimentos, dos bilionários da beleza aos magnatas da mídia. No entanto, nas casas e escolas, pontos de maior atrito da vida social, são tratadas como temas menores, como besteira, simples questão de consumismo ou mera futilidade, como "conversa de mulherzinha".


E quando a pressão explode na carne de meninas de 15 anos, os adultos covardemente se perguntam “Oh, estaríamos de volta à Idade das trevas?”, “Oh, de onde vem tanta selvageria?”.  A resposta está logo ali, do outro lado do espelho. Que tal dar uma olhadinha?


sexta-feira, 11 de maio de 2012

Lei de Acesso à Informação

LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO

O fim do sigilo eterno

Alberto Dines | Programa nº 638 | 08/05/2012

As bombásticas revelações produzidas pelo caso Carlinhos Cachoeira e a intensa polêmica sobre as relações de jornalistas com fontes suspeitas, em última análise relacionam-se com uma disfunção entranhada nas instituições nacionais: a falta de transparência e o sigilo sobre informações que deveriam estar disponíveis.
Leis não mudam uma sociedade da noite para o dia, porém podem mudar comportamentos. E, a partir do próximo dia 16, qualquer cidadão poderá solicitar dados de interesse coletivo sem apresentar justificativa. A lei vale para os três poderes nas esferas municipal, estadual e federal, tribunais de contas, Ministério Público, autarquias, empresas estatais e sociedades de economia mista. A exceção fica com os dados considerados confidenciais.
A resposta deve ser dada pela autoridade no prazo máximo de 20 dias, prorrogáveis por mais dez. E, se o acesso for negado, o órgão terá que apresentar justificativas por escrito e o cidadão prejudicado poderá entrar com um recurso. Quem se recusar a fornecer informações será considerado transgressor e sujeito a punição.
Estamos na véspera de uma revolução que poderá alterar drasticamente o formato da nossa sociedade e aumentar o peso da ação cidadã. O sigilo eterno está com os dias contados. Também os conchavos, as concorrências fajutas, as empresas de fachada, os testas de ferro.
É possível que no dia seguinte, 17 de maio, não se notem grandes diferenças. O poder público terá que se preparar rapidamente para a era da transparência. Também a imprensa. Ela é a chave para uma sociedade mais ativa e exigente


 


http://www.youtube.com/watch?v=xWzEBZpjXbI&feature=player_embedded

A última parte do programa você poderá acessar através link acima.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Carlos Eugênio Paz: memórias dos anos de chumbo

Parabenizo a Carta Capital por publicar esta entrevista e agradeço a Ana Helena Tavares (de "Outras Palavras") por realizar um trabalho digno e merecedor de elogios. Por vez, de primoroso bom gosto. Portanto, não poderia deixar de compartilhar com vocês.
Recomendo à leitura (Além da entrevista) do livro “Viagem à luta armada” do Carlos Eugênio Paz.

Ana Helena Tavares, para o Outras Palavras

Um escritório próximo à Cinelândia, a pouquíssimos metros do teatro que foi palco do discurso oco de Barack Obama, tem sido o local das reuniões de pauta do jornal online Rede Democrática. Na noite de sexta-feira, 25 de Março, tive a felicidade de participar dessa reunião e, em seguida, entrevistar um de seus membros: Carlos Eugênio Paz.
Podem chamá-lo de comandante “Clemente”. Entrou para a Ação Libertadora Nacional (ALN), quando esta organização política ainda era o chamado “Grupo Marighela” do Partido Comunista. Era um jovem de 16 anos. Naquele ano, 1966, a ditadura brasileira estava no “olho do furacão”, como definiu, dizendo que talvez isso tenha contribuído para sua sobrevivência, além de, principalmente, a lealdade de seus companheiros.
Minha intenção era entrevistá-lo sobre a Lei de Anistia, mas a conversa, saborosamente informal, e acompanhada por outros quatro integrantes da “Rede”, todos ex-guerrilheiros, aos quais dei a liberdade de intervir no papo, durou mais de uma hora. Mesmo porque ele não tem o menor problema em falar sobre seu passado. Ao contrário, acha isso importantíssimo. Tanto que já escreveu dois livros sobre o assunto: “Viagem à luta armada” e “Nas trilhas da ALN”. Tem um terceiro, pronto pra ser publicado.
“Se é revanchismo prestar contas com a história, sou revanchista”, diz com ironia Carlos Eugênio. Na verdade, ele se considera um “humanista”, que fala do Brasil como “um país a ser reconstruído”. A pauta não poderia ser mais variada. Conseguimos ir das reformas de Jango ao “erotismo de açougue” do BBB. Dos desaparecidos políticos ao estupro como “método de governo”. Da medalha jogada por “Clemente” num bueiro em Copacabana à jurisprudência dos “crimes conexos”, gerada por sua deserção do exército. Da ausência de nomes, como Apolônio de Carvalho, nos livros de história, à onipresença do STF na interpretação das leis de hoje. De Médici como atual patrono de novos oficiais das Forças Armadas à tradição militar de não queimar arquivos… Das mentes desperdiçadas pelo golpe ao “pacto de conciliação” que inexistiu – “Onde eu assinei?”, perguntou ele. Dos mais perversos métodos de tortura, como a “malfadada coroa de Cristo”, à importância da erradicação da fome. De Karl Marx, com a mais-valia, a Jean Paul Sartre, com “o inferno são os outros”. Da ditadura entendida como “opção golpista da direita brasileira” à “democracia domesticada” pelas… “antenas de TV”.
Saí com a conclusão de que a palavra “herói” está completamente desmoralizada e de que existe uma “democracia post-mortem” para aqueles que foram tiranos em vida. Entrevista altamente aconselhável para quem ainda acha que luta armada, contra um regime de exceção, é terrorismo. “Eu tenho um profundo orgulho de ter participado dessa luta. Olha, eu vou morrer orgulhoso. Sou um nordestino orgulhoso. Meu pai dizia: “Orgulho besta!” E eu dizia: pois eu sou besta, pai.”, confessou “Clemente”.

Ana Helena: Você foi o comandante mais jovem da ALN e o único que não foi preso nem torturado pela ditadura. Quais os fatores decisivos pra isso?
Carlos Eugênio: É difícil definir. Acho que duas ou três coisas contribuíram pra eu ter sobrevivido. Digo ter sobrevivido, porque, se eu tivesse sido preso, eu já estava condenado à morte, tanto formal quanto informalmente. Porque tinha pena de morte no Brasil durante a ditadura. E eu fui uma das quatro penas de morte pedidas.
Quanto a minha sobrevivência, acho que se deve primeiro ao fato de eu ter entrado cedo. Tive mais tempo de aprender e tinha características individuais próprias pra um guerreiro. Tinha um físico avantajado, dirigia muito bem, atirava bem e tinha um fôlego muito grande. Era praticamente incansável. Ou seja, eu tinha algumas facilidades para a guerrilha urbana. Da rural, nunca participei.
Tem um pessoal que fica meio chocado com esse negócio de idade… Eu queria perguntar: qual foi a guerra travada por velhos? As guerras são dirigidas por homens velhos, devido à sua sabedoria. É o caso do general Giap, que dirigiu a guerra do Vietnã. Agora, o combatente tem que ser jovem. No Vietnã mesmo, você via garotos de 14, 15 anos, lutando na frente de libertação deles.
O “olho do furacão”
Outro fator que creio ter contribuído pra minha sobrevivência é, por incrível que pareça, o fato de eu ter entrado no “olho do furacão”. Você sabe que quando o furacão passa, o momento de calmaria é justamente quando você tá no olho. Quer dizer, você tá ali no meio, o vento fica rodando em volta e você nem se despenteia. Quando eu entrei na organização, com 16 anos, eu já estava sendo apresentado ao Marighela e eu acho que isso tem a ver, porque eu mergulhei aí. Por orientação dele, em vez de ir pra Cuba naquela época, fui pro exército brasileiro pra treinar e aprender a ser um militar.
Os companheiros
Há todas essas razões, tem o acaso, tem tudo, mas a razão mais importante são os meus companheiros. Apesar de eu ter sido por muitos anos a pessoa mais procurada da Ação Libertadora Nacional, eu fui umas das menos abertas. Não no sentido de ninguém dizer “ah, ele fez isso, fez aquilo”, mas me preservaram no sentido de não abrirem meus pontos de encontro. Fui agraciado pela valentia, pela dignidade dos companheiros que foram torturados pra dizerem onde eu estava – e muitas vezes eles sabiam – mas não disseram. Minha sobrevivência eu dedico a eles.

Ana Helena: Como foi uma história de que você ganhou uma medalha do exército e a jogou fora num bueiro em Copacabana?
Carlos Eugênio: Bom, eu fui condecorado com a medalha de melhor soldado do Forte de Copacabana. Era simples ganhar essa medalha. Por que? Porque eu era o único soldado que estava treinando realmente. Os outros soldados todinhos estavam danados da vida de estar lá. Estavam putos, a palavra certa é essa. Ninguém queria servir o exército. Era um atraso de vida. Se o cara era de classe média, estava prejudicando os estudos. Um ou outro queria até estar na instituição, mas não tinham vontade de treinar. Eram caras pobres, que moravam em favelas e o exército para eles era uma certa proteção. Tinham ali o soldo, que era pequenininho, mas almoçavam, comiam e tinham a roupa lavada. Era uma fonte de sobrevivência, mas não queria dizer que estivessem a fim de se esforçar no treinamento. Eu estava.

“Pra comandar, tem que obedecer”
Fui lá com uma tarefa de aprender a ser um bom militar. Então, me dediquei muito, muito. “Ah, vamos fazer uma corrida…” Opa, já ia eu lá… O Marighela dizia: “Pra comandar, tem que aprender a obedecer”. Lá fui eu obedecendo… (risos) E ele dizia mais: “Você tem que aprender o pensamento de um militar. Porque nós vamos precisar de quadros militares”… Eu ficava observando os militares, como eles pensavam, e tentando me transformar num deles… Foi realmente o que aconteceu.
Em Outubro de 1969, eu ganhei a medalha. Levei pra casa, só que houve um problema. Logo em seguida, minha irmã foi presa e torturada, barbaramente, pelo mesmo exército que havia me condecorado. Então, peguei essa medalha e joguei num bueiro na Av. Princesa Isabel, perto do túnel novo. Estava junto com dois companheiros que, infelizmente, não podem estar aqui pra contar história: Luiz Afonso Miranda Rodrigues, o “Girafa” (da ALN); e o Aldo de Sá Brito, meus amigos de infância, de começarmos a vida juntos.

Ana Helena: O Aldo de Sá Brito teve uma morte perversa. Queria que você comentasse como foi isso.
[“Um dos melhores quadros da esquerda”, diz um dos presentes]
Carlos Eugênio: O Aldo era sobrinho-neto do cardeal do Rio de Janeiro. Foi preso numa ação de uma expropriação de um banco em Belo Horizonte. A polícia chegou no final do assalto e eles foram tiroteando com a polícia. Ele entrou num prédio de apartamentos, tentou pular da janela do segundo andar pra ir pra outro prédio, caiu e quebrou um osso da bacia. Não conseguiu fugir. Foi preso e torturado até a morte com a famosa “coroa de Cristo”.

A “coroa de Cristo”
Ele é um dos casos comprovados do uso da malfadada coroa de Cristo. Trata-se de um aro de metal, colocado em volta da cabeça, com parafusos do lado de dentro do aro. Daí eles iam regulando e comprimindo o crânio até arrebentá-lo. Outra companheira que morreu assim foi Aurora Maria Nascimento Furtado.

Ana Helena: Sobre a Lei de Anistia, como é que você vê a decisão do STF, que reafirmou a impunidade dos torturadores?

Carlos Eugênio: Primeiro, eu acho um absurdo o STF tratar disso. Segundo, o problema da Lei de Anistia não começa com o STF, mas com a própria Lei de Anistia. Essa lei foi parte do processo de passagem dos governos militares para os civis. Não houve uma vitória de um lado. Eu costumo dizer que, no Brasil, a ditadura não caiu, ela se transformou.

A “democracia domesticada”
E, ao mesmo tempo em que se transformava, ela foi criando um novo sistema político que é esse no qual nós vivemos hoje. Chamo de “democracia domesticada”. A expressão é do meu amigo Luiz Felipe Miguel, que tem um texto com este título. Porque ainda estamos muito distantes de uma democracia popular e mais distantes ainda de uma democracia direta, que é a forma para a qual, eu acho, a humanidade tem que caminhar pra ela. Primeiro a popular, depois a direta.

A lei de anistia
Chegou um momento em que a ditadura não conseguia mais se sustentar. Os militares estavam muito desgastados. Não conseguiam mais controlar a economia do país, não conseguiam mais se manter no poder enquanto ditadura, aquela que de cinco em cinco anos trocava de ditador. Ressurgiu um movimento popular. Primeiro, a campanha da anistia tornou-se um clamor crescente na sociedade civil. Até que os militares foram obrigados a fazer uma lei.
Só que ela foi sendo reformada. Na primeira versão, votada em 1979, quem participou dos chamados “crimes de sangue” — ações onde morreu alguém – não estava anistiado. Eu, por exemplo, que participei, estava fora. Naquele ano, quem saiu da cadeia, não foi pela anistia, foi por indulto de Natal. A famosa anistia “Ampla, geral e irrestrita” não aconteceu no Brasil. [“inicialmente, permaneceram restrições políticas”, lembra um dos presentes]. Além disso, anistiava-se tanto quem lutou pela liberdade como aqueles que solaparam a liberdade.
A jurisprudência dos “crimes conexos”
Quando voltei ao Brasil, dois anos depois da Lei de Anistia, eu ainda não estava anistiado. Tive que travar uma batalha jurídica clandestina. Em Março de 1982, entrei na embaixada francesa em Brasília e recorri ao STF. Lá é que eu acabei sendo anistiado, em 6 de Maio de 1982, sendo que a lei é de 79. Quase três anos depois. Foi através de um artigo para o qual eu, infelizmente, criei jurisprudência, que é o dos crimes conexos.
Eu desertei do exército. E eles diziam: “é crime militar, não é crime político”. Aleguei, então, que desertei, porque militava na ALN e lutava contra a ditadura. E a jurisprudência é que os torturadores foram incluídos justamente nesse artigo. De que maneira? Tortura não é crime político, é crime contra a humanidade. Mas foi cometido por motivações políticas. Foi esse o entendimento do parecer emitido pelo STF.

Humanistas, socialistas, comunistas e democratas
No Brasil, os dois lados estão anistiados. Através de uma lei surgida de um acordo, que foi o possível de se fazer na época. Não é que se diga: “Ah, não devíamos ter aceito aquele acordo”… Essas coisas em história não existem. Você faz o que tem força pra fazer. Se a gente tivesse mais força, a gente tinha tomado o poder, instalado uma democracia popular e punido todos esses torturadores com penas de prisão. Jamais a de tortura. Porque nós nunca torturamos, nem torturaríamos. Somos humanistas.

O julgamento histórico é o principal
Sinceramente, eu acho que o julgamento histórico é o mais importante de todos. Primeiro porque muitos dos torturadores já morreram. Segundo porque havia uma “cadeia de comando” nisso tudo. O cara que ia torturar era o último da “cadeia alimentar”. Estava imediatamente antes do prisioneiro, era quem o tocava. Imagine se general Médici alguma vez tocou em algum prisioneiro… Ou Costa e Silva, ou Castello Branco… No entanto, partiu deles a instauração de um regime cuja manutenção do poder baseava-se na censura, na tortura, no assassinato, no sequestro de militantes políticos opositores, etc…
Esses é que devem ser primeiramente julgados. E a eles, infelizmente, só vai caber o julgamento da história. Agora, como a gente pode viver num país em que o Médici é tratado como presidente? É só pegar o seu livro de história… [“Nós vamos voltar pra casa atravessando a ponte Presidente Costa e Silva”, lembrou um dos presentes referindo-se à Rio-Niterói]. Como é que pode?

O exemplo francês
Estou chegando da França. Fui passar um tempinho lá na casa de amigos. Em cada canto de Paris, você encontra uma placa: “aqui morreu um combatente da liberdade assassinado pelas forças de ocupação nazista”. E as pessoas que colaboraram para o regime nazista são todas conhecidas. Inclusive, algumas tiveram a coragem política de escrever livros e assumir essa colaboração com o regime de Vichy. E há gente a favor deles.
Uma opção da direita brasileira
Como aqui, é evidente que muita gente colaborou com os militares. Não tivemos uma ditadura militar com um bando de generais de opereta que resolveram dar um golpe de Estado. Foi a direita brasileira que optou pelo caminho golpista e usou as forças armadas como ponta de lança.

Apolônio de Carvalho X Duque de Caxias
Temos o privilégio de sermos a pátria de nascimento de um herói de três países. Sabe lá o que é isso? E até hoje nós não o chamamos de herói… E eu vivo dizendo isso por aí: para mim, Apolônio de Carvalho deveria ser o patrono do exército brasileiro. Ele foi resistente da guerra da Espanha, herói da resistência espanhola, coronel e herói da resistência francesa, ganhando a mais alta condecoração que é a Legião D’Honeur… Você chega em Toulouse, na França, e todos sabem quem foi Apoloniô de Carvalhô…
Porque foi ele quem dirigiu as tropas da resistência que libertaram Toulouse… Eu fui agora e há uma placa em homenagem a ele. No Brasil, até hoje a história não o fez justiça. Enquanto o general Duque de Caxias, um homem que era assassino de negros e dos irmãos paraguaios, é o patrono do exército… [“Ainda passaremos pela rua Moreira César”, completou um dos presentes, referindo-se ao algoz de Canudos].

E assim caminha o nosso exército…
Recentemente, a Academia Militar das Agulhas Negras escolheu Emílio Garrastazu Médici como patrono de uma turma de novos oficiais. Olha só isso… Nossos jovens oficiais sendo educados dentro do pensamento do general golpista. Um general que mandou matar e torturar milhares de brasileiros [“o pior governo militar”, definiu um dos presentes]. A gente fica pensando… “E a punição aos torturadores?”… Tudo bem, quanto aos que ainda estão vivos, se a gente conseguir julgá-los e levá-los a tribunal dentro das normas vigentes no país. Tudo bem, vamos lá… Mas mais importante que tudo isso é o julgamento da história. E é disso que a gente tem que correr atrás…

O Brasil não abre arquivos, mas o exército não os queima…
Porque, por exemplo, os arquivos da guerra do Paraguai… Tente você, como jornalista, acessá-los pra ver se você consegue… Não, porque nesse país há uma tradição de não se abrir arquivos. Ficamos nessa discussão sobre a abertura dos arquivos militares e se eles existem. Existem! Se tem uma coisa que militar faz é arquivo. E se tem uma coisa que militar não faz é queimar arquivo. Ele finge que queima. Ele queima uma parte que não tem importância, mas a parte principal tá lá.

Cadê, onde, como?
E nós queremos saber… Por exemplo, onde está Paulo de Tarso Celestino? Onde está Virgílio Gomes da Silva? Onde está Heleni Telles Guariba? Onde estão todos esses companheiros que desapareceram, sumiram, as famílias não conseguem encontrá-los nem enterrá-los, simplesmente pra ir lá no dia em que quiserem e colocar uma flor no túmulo? Onde estão esses corpos? Como eles morreram? Por ordem de quem? Em que circunstâncias? Como é que a coisa aconteceu? Essas pessoas vão viver o resto da vida, gerações e gerações, e vai ter um elo que nunca vai se fechar… Nunca? Onde está Stuart? Como mataram a mãe de Stuart?

Caminhar pra frente
“Ah, mas vamos deixar isso pra lá pra gente caminhar daqui pra frente…” Isso não é caminhar pra frente. Caminhar pra frente é exatamente você limpar o terreno — e se alguém tem que ser punido, que seja… Ficam falando sobre a “Comissão Nacional da Verdade”… Que tem que olhar os dois lados… Mas o nosso lado já foi julgado, condenado e cumpriu pena. Quem não foi julgado e condenado foi o lado de lá. E estupro e tortura são crimes hediondos, inafiançáveis e imprescritíveis. O mundo inteiro reconhece isso. [“Poucas das mulheres que foram presas tiveram a sorte de não ser estupradas e isso era liberado pelos generais”, lembrou um dos presentes]. O estupro não era feito por torturadorezinhos tarados. Isso era uma política, era um método de governo.

Ana Helena: Voltando à Lei de Anistia, você comentou que acha um absurdo essa discussão ter ido parar no STF. A tarefa é de quem, então? Do Congresso?

Carlos Eugênio: As leis, segundo a nossa Constituição, são tarefa do Congresso. Mas agora virou mania… É o STF que interpreta a lei. Quando eles simplesmente tinham que ajudar a aplicar a lei. Eles não podem ficar dizendo: “Isso aqui é assim e não pode mudar”. Que história é essa? E, se a gente conseguir uma maioria no Congresso e resolver mudar a Lei de Anistia, não pode porque o STF diz que não pode? [“Ainda tem uma coisa... no Congresso, as pessoas são eleitas e têm mandatos por tempo determinado... no STF, não são eleitos e são vitalícios... isso é uma aberração”, frisou um dos presentes]. O sujeito comete um crime, como aquele juiz “Lalau”, e a grande punição dele é ir pra uma aposentadoria compulsória, recebendo o mesmo valor de que se ele não tivesse cometido o crime. Não vai trabalhar mais e vai poder ganhar dinheiro… Vai poder jogar na bolsa, vai ter tranquilidade…

Ana Helena: Quanto à punição aos torturadores, você comentou e todos sabemos que muitos já morreram. Ainda cabe aos vivos uma punição de prisão?

Carlos Eugênio: Primeiro, eles têm que passar pra história pela porta que entraram: a lixeira. Porque alguém que comete um atentado contra a democracia, que derruba um governo eleito pelas regras democráticas – parte de uma das Constituições mais democráticas que o Brasil já teve, a de 1946 – que era legítimo e representativo, alguém que arrebenta as portas da legalidade, instaurando um governo ditatorial, tem que passar à história como isso: como ditadores, inimigos da democracia e torturadores. Agora, há uma coisa, que não é questão moral: a Comissão Nacional da Verdade, aprovada ainda no governo Lula. Nós já falamos a verdade…
Até pra Globo…
Nossos companheiros foram torturados e muitos falaram sob tortura. Além disso, escrevemos nossos livros. Eu não tenho escrito no armário… Tenho dois livros publicados e um prontinho. Estão ali as ações armadas de que eu participei, polêmicas ou não, as mortes que eu cometi. Tá tudo ali aberto. Além dos livros, ainda há os jornalistas que me entrevistam. Nunca me recusei a falar. Costumo brincar dizendo que até pra Globo eu falo. Já falei pro Fantástico, pra Veja, pro Estadão, pra Folha, etc… Agora que o SBT tá produzindo uma novela chamada “Amor e Revolução” (sobre a ditadura), eu fui a São Paulo dar minhas declarações pra eles… Enfim…

Ana Helena: E o que você acha da idéia dessa novela do SBT?

Carlos Eugênio: Bom, eles estão usando a palavra “revolução” em referência ao nosso lado. Muita gente entendeu errado, mas eles não estão chamando o golpe de Estado de revolução. E, sim, a nossa. Porque os personagens principais são dois guerrilheiros. É muito interessante, tô dando a maior força. Estreia em Abril.

Mas ainda falta o outro lado se manifestar…
Aí eu pergunto: Por que Jarbas Passarinho não vem a público e conta a verdade? Um homem que redigiu o AI-5 é tratado hoje em dia como um democrata. “Ah, é um ex-senador da República e tal…” Um homem que foi ministro de Médici. E, quanto ao exército, eu acho que eles têm que colocar na cabeça o seguinte: é muito melhor pro exército abrir os seus arquivos, porque não foi o conjunto do exército brasileiro que cometeu as atrocidades, gente. Isso aí quem tem que pagar historicamente são os comandantes. Quem ganha a guerra não é o comandante? É! Quem perde também é… Foram eles que instauraram a ditadura. Ou vocês acham que foi o soldado, o tenente, o capitão… Não foi! Então, o alto comando das forças armadas tem que assumir que foram cometidos esses crimes de lesa-pátria. E nós ainda nem temos condições de avaliar os prejuízos que esse país teve com aquele golpe de Estado.

As reformas traídas
Estamos ainda muito centrados em denunciar o que os caras fizeram, mas você já pensou, por exemplo, o atraso que foi pro Brasil a não-promulgação das reformas de base de João Goulart? O Brasil seria outro país se a reforma agrária que João Goulart enviou ao Congresso tivesse sido realizada naquela época. Um monte de camponeses não teriam morrido… Um monte de problemas de abastecimento que esse país teve, de pobreza, de miséria, de violência, tudo isso teria sido diferente. Inclusive, o êxodo rural.
Outra: havia também a reforma urbana, da qual muita gente esquece. Reforma educacional, reforma do sistema financeiro, com a lei de remessa de lucros… Enfim… Por enquanto, nós só estamos falando das liberdades, mas o que mais o Brasil perdeu? É tão importante a gente abrir esses baús que estamos muito concentrados, mas um dia haveremos de ter uma ideia do prejuízo que foi o golpe de Estado. Não esquecendo, esquece tortura, esquece tudo, não… Mas pensando: se o Brasil tivesse ido por aquele caminho, quanto nós teríamos ganhado?

As mentes desperdiçadas
E mais… Ninguém há de duvidar que, entre os nossos companheiros, estavam algumas das mentes mais importantes, que mais contribuições poderiam dar à nossa pátria. Você já imaginou um homem com o poder de discernimento, de clareza que tinha Carlos Marighela, se, ao invés de usar sua energia criadora para a destruição de um sistema, ele a estivesse usando para a construção? Ele era um poeta… Tenho certeza de que teria sido muito mais importante pro Brasil dentro de um processo democrático do que dentro de um processo em que tivemos que fazer uma luta armada…
E ele acabou morrendo ali, na Alameda Casa Branca, por um monte de tiros, por um monte de marginais, comandados por um marginal maior chamado Sérgio Paranhos Fleury, homem da pior estirpe, que depois acabou sendo morto como queima de arquivo. Então, vejam bem… O próprio Aldo de Sá Brito era um tremendo poeta, mas, infelizmente, uma pessoa bem próxima a ele, com medo da ditadura, quando ele andava na clandestinidade, queimou os poemas que ele tinha. Uma mulher como Ana Maria, que foi minha primeira companheira na vida, tocava piano de maneira maravilhosa. Era pintora, estudou na antiga Escola Nacional de Belas Artes. Desenhava também, era uma artista… E a mulher morre com 23 anos de idade, assassinada a tiros numa esquina no bairro da Mooca. Um menino como o Marcos Nonato, que entrou na ALN com 14 anos e o mataram com 18. Enfim…

Mas morreram em pé
Fora uma meia dúzia, ninguém se arrepende disso não. Estávamos lá pra isso mesmo. Era o que tinha que ser feito. Mas o que motivou isso? Foi o golpe de Estado de 31 de Março de 1964, que nos fez termos que sair das nossas ocupações, como brasileiros, pra podermos dizer que nesse país não íamos morrer de joelhos, íamos morrer em pé. Se um dia essa discussão voltar ao Congresso, tem que se discutir: vai se punir ou não essas pessoas? Ora, estamos numa democracia… Tortura é crime? O que a lei prevê como crime? Tem que ser uma discussão técnica, nas letras da lei. Ou será que vai ser uma troca? Quem pegou em armas contra a ditadura vai ter que fazer os anos de cadeia que faria caso não tivesse a Lei de Anistia? Fica essa questão no ar…

Ana Helena: Fala-se muito num “pacto de conciliação” e que quebrá-lo seria prejudicial. Existiu tal pacto?

Carlos Eugênio: Onde é que eu assinei? Eu era comandante da Ação Libertadora Nacional. Sou o único que ficou vivo, porque todos foram presos, torturados e mortos. Você assinou? Você assinou? [pergunta ele aos companheiros presentes, recebendo a negativa de todos].
Então, eu quero saber onde é que está esse pacto. Isso foi feito lá em cima, dentro da classe dominante. [“Acho que foi feito entre o Sarney e o Jarbas Passarinho, eles se acertaram por lá e fizeram isso”, brinca um dos presentes]. Mas o povo brasileiro não participou. Por acaso foi feito algum referendo? Eles disseram ao povo: “vem cá, como é que a gente vai acabar com essa merda? Fizemos um golpe de Estado, ficamos vinte anos no poder e queremos sair, porque agora não tá dando mais. O Jimmy Carter já disse que não vai dar mais dinheiro pro Brasil se continuar essa ditadura.” Disseram isso? Foram logo convocadas eleições gerais livres? Ora, a primeira só viria a ocorrer em 1989, dez anos depois da Lei de Anistia. E esse foi o tempo necessário para que os caras montassem um sistema que é o que aí está. E pra montar esse país, que a gente tá tentando, com muita vontade, com muita garra, reconstruir. Quando o Brasil saiu da ditadura, era um
país a ser reconstruído, porque ele foi dizimado, acabado – política, econômica e socialmente falando.

Ana Helena: O que você acha da expressão “revanchismo”?

Carlos Eugênio: Eu sou revanchista. Porque o problema é que os caras criam umas categorias e dão uma conotação, inclusive moral, que não existe. Ou seja, se é revanchismo prestar contas com a história, então eu sou revanchista. Eu prestei minhas contas. Fui condenado à revelia, entrei na clandestinidade, lutei e não me arrependo. Se eu precisasse dar mais dez anos, daria mais vinte. Não importa.
Não precisou, tudo bem. Estou vivo. Se estivesse morto, seria mais um nome na lista. Agora, minhas contas estão prestadas em livros, reportagens e teses acadêmicas escritas sobre mim. Por exemplo, tem uma na Unicamp, que é: “A importância dos livros do Carlos Eugênio Paz para reconstrução da história da luta armada no Brasil”. Pronto, tá lá. São 400 páginas explicando a importância que tem eu ter falado.

O orgulho
Quando ninguém falava nada, em 87, quando nem havia a nova Constituição, na época da Constituinte, veio à tona um caso polêmico ligado à ALN. O JB me procurou e eu contei a história todinha. Saiu na primeira página, num domingo. Até o meu padeiro ficou sabendo quem eu era. Aí me perguntaram: “Por que você contou?” E eu respondi: “porque me perguntaram”. E por que isso? Porque eu não tenho problema com a minha história, com o meu passado. Tudo o que eu fiz na luta armada eu assumo e, se tiver algum caso que eu ainda não contei, é simplesmente porque não me perguntaram… [risos] Se perguntar, eu conto!
Sabe por quê? Porque eu tenho um profundo orgulho de ter participado dessa luta. Vou morrer orgulhoso. Sou um nordestino orgulhoso. Meu pai dizia: “Orgulho besta!” E eu dizia: “pois eu sou besta, pai”.

Ana Helena: Por tudo o que você disse, fica entendido que o que você acha fundamental nessa discussão, para que nos tornemos de fato uma democracia, é a localização dos dois lados na história, certo?

Carlos Eugênio: Exatamente. Marighela é herói do povo brasileiro. Médici é ditador. Brecht dizia “pobre do povo que precisa de heróis”.
Heróis
Mas hoje chamam de heróis os participantes do BBB!!!!! Aquele ex-jornalista… [“Pedro Bial”, disse alguém, ao que Carlos Eugênio rebateu: “você falou, mas eu não falo nem o nome”] Ele era jornalista quando cobriu a queda do Muro de Berlim. Agora deveria pensar três, cinco, dez vezes… Será que ele já se deu conta do desserviço que faz à sua própria biografia? Será que a queda do Muro de Berlim é igual a um BBB? Então, eu já vou começar a achar que não tinha que ter caído o muro… (risos) Mas veja… Chamam os participantes de um jogo de televisão, pra ganhar dinheiro, de heróis. Jogo de onde só se tira porcaria, coisas que nossas famílias e crianças não precisam aprender, que é como se faz alianças pra dar golpe.
Erotismo
E a erotização… Olha que quem tá falando é uma pessoa que assume profundamente a sua própria erotização. Eu não tenho problemas com o erotismo. Nenhum. Sou leitor de Anaïs Nin e Henry Miller. Fui formado na escola do erotismo. Agora, o problema é transformar isso numa mercadoria de mau gosto, como é o BBB. Hoje em dia, tem gente que até vota pras meninas saírem mais rápido da casa, nos tais dos paredões, pra posarem no Paparazzo, na Playboy, Sexy etc… Isso eu tô falando porque ouço caras dizendo: “Vou votar em fulana, porque estou louco pra vê-la no Paparazzo”… Incentivando uma coisa que eu chamo de “erotismo de açougue”. Como se o erotismo fosse essa coisa de baixo calão que é pregada no BBB…

O Juquinha precisa saber
Mas, voltando à questão da localização dos sujeitos históricos, eu só vou morrer feliz quando Juquinha chegar na escola, abrir seu livro e estudar sobre João Cândido [o “almirante negro”, líder da Revolta da Chibata]. Apolônio de Carvalho, Joaquim Câmara Ferreira (comandante “Toledo” da ALN)… Agora na posse da companheira Dilma eu fiquei horrorizado, mais uma vez, porque me horrorizo a cada três segundos nesse país… É que deram o número total de presidentes… E eu pensei: não eram todos presidentes. Como podem até hoje chamar os caras que tomaram o poder pelas armas de presidentes? [“É tradição”, comentou um dos presentes] E eles ainda tentaram colocar nas costas da esquerda brasileira um rompimento com a democracia… Que é isso? Quem rompeu com a democracia nesse país?

Ana Helena: Como você vê a atuação da mídia nesse processo?

Carlos Eugênio: Bom, a Folha de S. Paulo emprestava os carros da redação pra transportar companheiros presos e torturados. E ainda ajudava a montar emboscadas. Porque alguns companheiros, sob tortura, fraquejavam e diziam: “eu vou encontrar com fulano na rua tal”. [“Até pra tentar fugir”, comenta um dos presentes]
Eles usavam os carros da Folha pra que a gente não desconfiasse. A UltraGaz também fazia isso com seus caminhões. O Globo e o Estadão pediam o golpe em seus editoriais. É impressionante como essas pessoas não foram presas na época… Porque você está num país democrático, a pessoa chega e diz claramente: “precisamos derrubar esse governo”… Isso é sedição.
Eles é que praticaram isso. Então, essa mídia foi construída assim. Ela já era uma mídia de classe, concentrada. A gente sabe que cinco ou seis famílias dominam a grande mídia. Mas agora, felizmente, a coisa já tá se abrindo pra uma mídia alternativa, que já é outra história. A gente vê lá no fundo uma certa luz, há um monte de gente trabalhando, batalhando, pra construção dessa nova mídia e lutando, inclusive, pra democratização das informações e das comunicações.
São duas coisas diferentes, informação e comunicação. E a gente tem que lutar pela democratização das duas.

Na ponta do fuzil e nas antenas de TV
Por exemplo, quando saiu o terceiro Plano Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3), essa mídia oficial todinha meteu o pau. Por quê? Porque eles estão defendendo os interesses deles. Mao Tsé-Tung dizia que “o poder está na ponta do fuzil”. Pois é, hoje o poder está na ponta do fuzil e nas antenas de TV. [Um dos presentes lembra o caso Proconsult, em que a Globo tentou fraudar a eleição de Brizola para o governo do RJ].

Ana Helena: Qual sua expectativa com relação ao papel da Dilma, uma ex-torturada, nessa questão?

Carlos Eugênio: Eu acho que são passos adiante. Por exemplo, o governo Lula foi o dos meus sonhos? Não. Mas foi um passo adiante? Foi. Um tremendo! Por que não foi o governo dos meus sonhos? Porque foi um governo que, ao mesmo tempo que…
Sabe o que é? Vamos falar informalmente… Eu não mudo pra incluir ninguém no mercado. A minha luta não é pra isso. É pra acabar com mais-valia, com a exploração do homem pelo homem. É uma luta muito mais profunda, mas que tá muito mais lá na frente… Aí, quando dizem o seguinte: “15% dos miseráveis passaram a ser pobres, 32% dos pobres passaram a ser classe média, tantos por-cento passaram a ser ricos…” Isso, pra mim, só é passo adiante porque, se você tem um homem que tá passando fome, é importante que ele passe a comer. Se ele não passar a comer, ele entra num estado de degenerescência humana e que se transforma em degenerescência social. [“Não podemos deixar ninguém morrer de fome na sociedade”, diz um dos presentes]. Porque nós somos humanistas e queremos que todo mundo coma.

O governo Lula: um passo adiante
São passos adiante, dados pelo governo Lula. Agora, os bancos nunca ganharam tanto… Em janeiro, fui a São Paulo, e participei de uma discussão em que alguns companheiros afirmaram: “O governo Lula diminuiu as desigualdades”. E eu disse: Não! Se você me falar que o governo Lula distribuiu renda, distribuiu. Mas aumentou a renda de baixo, deixando que a de cima aumentasse também. A desigualdade continuou a mesma. Só que todo mundo subiu um pouco, não é isso?
Mas para acabar com a exploração do homem pelo homem ainda há muito a fazer. E se você me perguntar: “será que dois, três, quatro governos desse tipo não vão no levar à democracia que você quer?”, eu vou dizer: “Não! Ainda vai faltar outro estágio, que é mudar a estrutura das relações dos meios de produção no nosso país. Aí a gente vai chegar num Brasil fraterno em que ninguém explora ninguém, todo mundo respeita a opinião de todo mundo.”

A fraternidade: o diferente não é o inferno
Porque cadê a fraternidade? É simplesmente uma campanha da CNBB uma vez por ano? É doar um quilo de alimento não perecível? Isso é caridade! Cristã. Fraternidade é você encarar que o seu diferente não é o seu inferno. Sartre é que dizia isso: “o inferno são os outros”. Quer dizer, tudo que não sou eu é o inferno pra mim. Então, temos que conseguir que o ser humano, especificamente o brasileiro, encare o seu diferente como seu igual. Falta muito? Falta! Mas são passos adiante…

Dilma: duas questões a atacar
A Dilma? A gente sabe que, no atual sistema, pra governar você precisa de maiorias e de um monte de coisas, se não você faz um governo horroroso que não anda pra lugar nenhum. Ela vai tentar, e espero que consiga, gerenciar da melhor maneira possível dentro do capitalismo brasileiro. Espero que ela dê mais passos à frente com relação ao governo Lula.
Duas das questões que eu acho que ela pode atacar são a Comissão Nacional da Verdade e a democratização da informação. Porque a mídia, que só fala segundo seus interesses de classe, vai ter menos poder do que tem hoje [um dos presentes lembrou sobre a importância dos Pontos de Cultura e do Programa Nacional de Banda Larga].

Democracia post-mortem
Quando morreu o Frias pai, todos os órgãos de imprensa disseram que morreu um democrata. Quando morreu o Roberto Marinho, também. E as pessoas dos governos de centro-esquerda têm comparecido aos enterros… [“As pessoas, na política, não são pessoas, elas são o que elas representam e são um conjunto de forças em movimento...Um presidente da República tem que administrar as pressões dentro do governo... e cada um faz isso de uma maneira... então, não se pode julgar ninguém como pessoa”, resumiu um dos presentes].

Os outros ex-guerrilheiros presentes eram:
Affonso Henriques, ex-PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário)
Colombo, ex-ALN
Paulo Gomes, ex-ALN
Pedro Alves, ex-MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro)
*Matéria publicada originalmente em Sul21

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Você sabe?

Saiu na Carta Capital artigo de Mino Carta:
Opinião pública, o que é?

Pergunto aos meus reflexivos botões qual seria no Brasil o significado de opinião pública. Logo garantem que não se chama Merval Pereira, ou Dora Kramer, ou Miriam Leitão. Etc. etc. São inúmeros os jornalistas nativos que falam em nome dela, a qual, no entanto, não deixa de ser misteriosa entidade, ou nem tão misteriosa, segundo os botões.

A questão se reveste de extraordinária complexidade. Até que ponto é pública a opinião de quem lê os editorialões, ou confia nas elucubrações de Veja? Digo, algo representativo do pensamento médio da nação em peso? Ocorre-me recordar Edmar Bacha, quando definia o País -como Belíndia, pouco de Bélgica, muito de Índia. À época, houve quem louvasse a inteligência do economista. Ao revisitá-la hoje, sinto a definição equivocada.

Os nossos privilegiados não se parecem com a maioria dos cidadãos belgas. A Bélgica vale-se da presença de uma burguesia autêntica, culta e naturalmente refinada. Trata-se de tetranetos da Revolução Francesa. Só para ser entendido pelos frequentadores do Shopping Cidade Jardim em São Paulo: não costumam levar garrafas de vinho célebre aos restaurantes, acondicionadas em bolsas de couro relampejante, para ter certeza de uma noite feliz. Até ontem, antes do jantar encharcavam-se em uísque.

Em contrapartida, a minoria indiana, sabe das coisas e leu os livros. Já a maioria, só se parece com a nossa apenas em certos índices de pobreza, relativa ou absoluta. No mais, é infelicitada por conflitos, até hoje insanáveis, étnicos e religiosos. Nada de Bélgica, tampouco de Índia. Nem por isso, a diferença, ainda brutal, existe entre brasileiros ricos e pobres, embora desde o governo Lula tenha aumentado o número de remediados.

O Brasil figura entre os primeiros na classificação da má distribuição de renda, pecha mundial. Na semana passada, CartaCapital publicou ampla reportagem de capa sobre vários índices do nosso atraso, a mostrar que crescimento não é desenvolvimento. De fato, o Brasil sempre teve largas condições de ser um paraíso terrestre, como vaticinava Americo Vespucci, e não foi porque faltou o comando de quem quisesse e soubesse chegar lá. Sobrou espaço para os predadores, ou seja, aqueles que, como dizia Raymundo Faoro, querem “um país de 20 milhões de habitantes e uma democracia sem povo”.

A opinião pública que os Mervais, Doras e Mirians da vida acreditam personificar, é no máximo, na melhor das hipóteses para eles, a dos seus leitores. Há outra, necessariamente, daqueles que não se abeberam a essas fontes, e muitos sequer têm acesso à escrita. Votam, contudo, e são convocados pelas pesquisas de opinião. À pressão midiática, que ignoram por completo, preferem optar por Lula e Dilma Rousseff. Temos de levar a sério esta específica e majoritária opinião pública claramente expressa e, em termos práticos, mais determinante que a outra.

A opinião pública que a mídia nativa pretende personificar já condenou o chamado mensalão e decidiu os destinos da CPI do Cachoeira. A opinião pública da maioria está noutra. O resultado do confronto há de ser procurado nas pesquisas e nas eleições, é o que soletram meus botões. Eles são exigentes e me forçam a um exame de consciência. Por que as circunstâncias me levam à referência frequente a mídia nativa? Acontece que a mídia é, sim, personificação da minoria. Aquela do deixa como está para ver como fica.

A mesma que conspirou contra Getúlio democraticamente eleito e contra a eleição de Juscelino. Ou que apoiou Jânio Quadros em 1960, tentou evitar Jango Goulart depois da renúncia e enfim implorou o golpe perpetrado pelos gendarmes fardados em 1964, e o golpe dentro do golpe em 1968. A mesma que desrespeitou o anseio popular por eleições diretas em 1984 e engendrou uma dita redemocratização, de todo patética, em 1985, e hoje ainda dá uma de galo no papel impresso e no vídeo. Será que a rapaziada se dá conta do que está a acontecer de verdade?

A mídia nativa, é fácil demonstrar, na sua certeza de representar a opinião pública do País todo pratica aquilo que definiria como jornalismo onírico. Neste mister, o Estadão de quinta 26 supera-se. Estampa na primeira página que a presidenta Dilma mente ao afirmar, ao cabo de um longo encontro com Lula em Brasília, a ausência de diferenças entre ela e seu mentor. A presidenta responde obviamente a uma pergunta e diz: “Não há diferenças entre nós e nunca haverá”. Então por que perguntam se estão certos de que seu sonho é a própria verdade?

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Pinheirinho, uma tragédia anunciada

Em dezembro, os sem-teto já prometiam reagir à polícia, sob uma lógica de sangue por sangue 22 de Janeiro de 2012 às 20:21

A tragédia em São José dos Campos estava anunciada desde o dia 8 de dezembro. Nesse dia centenas de moradores da Ocupação Pinheirinho ocuparam o vão livre do Masp, ao lado de outros movimentos sociais. Estive lá e fiz um relato sobre as demandas dos sem-teto. Dias depois, publiquei um texto específico sobre o que iria acontecer na Ocupação Pinheirinho. O título era: "Sem-teto temem conflito do século em São José dos Campos". A narrativa era a senha do que, em boa parte, viria mesmo a acontecer neste domingo. Os sem-teto prometiam reagir à polícia, sob uma lógica de 'sangue por sangue'. Segue o texto original, como foi publicado no dia 16 de dezembro:
http://alceucastilho.blogspot.com/2011/12/sem-teto-temem-conflito-do-seculo-em.html

Sem-teto temem "conflito do século” em São José dos Campos

A cidade da aeronáutica tem em seu chão uma bomba-relógio social. Duas mil famílias de sem-teto correm o risco de serem despejadas, em São José dos Campos (SP), naquela que é a maior ocupação urbana – organizada - da América Latina. A Justiça decidiu em julho pela reintegração de posse. Mas o movimento dos sem-teto, disciplinado, promete enfrentamento: “Agora é fogo no pavio! Sangue por sangue”.

A frase acima foi uma entre as escritas em faixas e cartazes do Movimento Urbano dos Sem Teto (Must), durante ato na Avenida Paulista, na semana passada. Vejamos outras elas, para sentir a temperatura: “Ocupar, construir, resistir. Legalizar na marra ou na lei”. Ou então: “Trabalhadores de ambos os lados vão morrer”. Os líderes falam em “enfrentamento do século”.

As 9 mil pessoas da Ocupação Pinheirinho estão desde 2004 no local. Já foram construídas casas de alvenaria, em uma área de 100 hectares. O terreno pertence à Selecta, empresa do investidor Naji Nahas – famoso por ter quebrado a Bolsa dos Valores do Rio, em 1989. Em 2008 ele foi preso pela Polícia Federal durante a operação Satigraaha, acusado de crimes contra o sistema financeiro. A Selecta está falida. Seu único credor, o município de São José – pois nunca pagou IPTU.

Este blog conversou com o porta-voz do Must, Valdir Martins – conhecido como Marrom. Ele explicou que a radicalização parte da juíza que decidiu, em julho, pela reintegração de posse. Ela quer o terreno desocupado até o fim de dezembro. Por ora os sem-teto estão abertos à negociação. Mas não existe a chance deles aceitarem pacificamente a desocupação. No local vivem 2.600 crianças.

“Movimento é muito organizado, quase um soviet”, diz Marrom. Eles têm reunião de lideranças todas as segunda-feiras. Às terças ocorrem as reuniões de grupos. Sábado é dia de assembléia – com a participação de 4 mil pessoas. “Se tiver desocupação vai ter sangue por sangue", afirma o porta-voz. “Não tem condição de retroceder. Estamos muito preparados para reagir. E o governo sabe disso”.

O PROTESTO NA PAULISTA
Centenas de pessoas da Ocupação Pinheirinho estavam no vão livre do Masp, no dia 8 de dezembro. O ato foi reaizado pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), pelo MST (regional Campinas) e pelos trabalhadores da Fábrica Ocupada Flaskô. Todos seguiram em passeata pela Avenida Paulista (para o desespero dos motoristas) até a Rua Augusta, onde ocuparam o prédio do Banco do Brasil – no terceiro andar funciona o escritório do governo federal em São Paulo.

Durante o trajeto, mais palavras de ordem: “Ou é na lei... ou na marra!” A cena tinha seu toque surreal, diante de uma instalação de Natal da prefeitura paulistana. Abaixo de um Papai Noel gigante, símbolos do Banco do Brasil e da Rede Globo – em uma cidade que se recusou a ter outdoors.

Exatamente no prédio do Banco do Brasil os movimentos sociais reuniram-se com a chefe de gabinete do escritório regional do governo, Rosemary Nóvoa de Noronha. Ela ligou para Brasília e obteve uma audiência com o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República. Ela foi marcada para a próxima segunda-feira, dia 19 de dezembro.

Carvalho é o ministro encarregado da interlocução com movimentos sociais. Durante o governo Lula essa função cabia ao ministro Luiz Dulci. As lideranças de movimentos prezam essa interlocução – embora critiquem a ausência de políticas públicas de moradia e de assentamentos no campo. A ministra Maria do Rosário Nunes, da Secretaria de Direitos Humanos, também estará presente.

OS SEM TETO E A POLÍCIA
Enquanto os manifestantes esperavam a reunião com Rosemary, no terceiro andar do prédio do BB (cedido pelo banco ao governo federal), eles gritavam palavras de ordem e cantavam. “Se matarem um daqui/ Não há o que temer”, diz uma das músicas de protesto. “Aqueles que mandam matar/ também podem morrer”. A polícia é citada como “contratada para matar trabalhador”.

São Paulo teve um conflito com mortes entre sem-teto e polícia, no dia 20 de maio de 1997, no governo Mario Covas. Durante a reintegração de posse na Fazenda da Juta, na zona leste (em Sapopemba), os sem teto reagiram com paus e pedras. Três deles foram mortos pelos policiais – que reagiram com balas. Segue o relato da DHNet, a Rede de Direitos Humanos e Cultura:

- Uma das vítimas foi morta por uma única bala na nuca, sugerindo execução sumária. Outro sem-teto foi morto com tiros no peito, enquanto o policial afirmou ter atirado em defesa própria depois de ter sido derrubado ao chão. No entanto, segundo o relatório do médico legista, a vítima fora alvo de dois tiros que atravessaram o peito em linha reta.

Por ALCEU LUÍS CASTILHO

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Carta Maior - Por Fábio Nassif, da aldeia Takwara (Mato Grosso do Sul)

Nove anos depois do assassinato do cacique Verón, expedição registra conflito de terra no MS

Expedição de profissionais ligados à questão indígena e militantes de diversas áreas ficará até o dia 25 na região acompanhando a situação dos indígenas. Iniciada no último dia 10, a expedição que homenageia o cacique assassinado por jagunços, a mando dos fazendeiros locais, produzirá um relatório e um documentário para denunciar as ameaças de morte e exigir a demarcação dessas terras indígenas. A reportagem é de Fábio Nassif.

No último dia 13 de janeiro, há nove anos do assassinato do Cacique
Marco Verón, liderança guarani-kaiowá de Mato Grosso do Sul, indígenas
da aldeia Takwara fizeram uma cerimônia em sua homenagem. O cenário
ainda é de violenta e cotidiana disputa pelas terras. A cerimônia,
chamada de Yvy ra'i nhamboaty, foi realizada durante uma expedição de
profissionais ligados à questão indígena e militantes de diversas
áreas, que ficará até o dia 25 na região acompanhando a situação dos
indígenas.

Iniciada no último dia 10, a expedição que homenageia o cacique
assassinado por jagunços, a mando dos fazendeiros locais, produzirá um
relatório e um documentário para denunciar as ameaças de morte e
exigir a demarcação dessas terras indígenas.

Motivada pela morte de 260 indígenas nos últimos nove anos, a
expedição, composta por geógrafos, jornalistas, psicólogos, advogados
e educadores, tem se deparado com os problemas vividos nas aldeias. A
pressão do agronegócio - principalmente da cana e da soja -, a
violência dos fazendeiros, jagunços e empresas de segurança privada,
a ausência - ou presença equivocada - do Estado fazem do Mato Grosso
do Sul um dos principais palcos de mortes indígenas.

Portas fechadas
No dia em que a equipe da expedição foi recepcionada pelos
guarani-kaiowá na aldeia Laranjeira Nhánderu, localizada no meio de
uma plantação de soja no município de Rio Brilhante, os responsáveis
pela fazenda colocaram caminhões e um globo de aço de arar terra na
entrada para impedir a circulação de pessoas no local. Dentro de
caminhonetes, homens armados rondaram a entrada da aldeia, deixando
todos em estado de alerta.

O gesto de intimidação foi respondido por contados da expedição com a
Funai, a Polícia Federal e entidades de direitos humanos. Para evitar
mais um ataque aos indígenas, decidiu-se telefonar para o
representante do Ministério da Justiça, Marcelo Veiga, para reforçar o
envio de ajuda aos indígenas.

Três agentes da Polícia Federal e dois da Funai chegaram ao local, e,
depois de conversar com os donos da fazenda, se entenderam com os
índios. A presença deles ajudou no desbloqueio do caminho, mas
explicitou as limitações desses órgãos para lidar com este tipo de
confronto.

Diferente do entendimento comum de que a Funai deve defender os
direitos indígenas, a responsável pelo órgão no estado, Maria de
Lourdes, afirmou que "o papel da Funai é mediar conflito entre os
fazendeiros e os indígenas", mesmo em casos como esse, onde a terra
está em litígio (aguardando julgamento) e historicamente pertence aos
guarani-kaiowa. Maria de Lourdes reconheceu que, em algumas áreas onde a expedição pretende passar, a Funai e a Polícia Federal não atuam
devido ao poder e agressividade dos fazendeiros.

Injustiça e violência
Também cercada pelas enormes plantações de soja, a aldeia Taquara
vive situação semelhante: rios poluídos pelo despejo de agrotóxicos,
tamanho limitado das terras que impede o plantio para subsistência,
indefinição jurídica do local e ameaças de morte. O cacique Ladio
Veron é um dos que estão marcados para morrer na lista dos
fazendeiros. Ele passou o seu aniversário lembrando do dia em que os
jagunços o seguravam, enquanto matavam seu pai na sua frente. Os
assassinos, mesmo condenados, vivem em liberdade.
Nos locais do assassinato e enterro do corpo do cacique Marco, sua
filha, Valdelice, segurando a neta Arami, reafirmou que "a luta do
povo guarani-kaiowa não vai parar". A água da chuva se misturou com
as lágrimas desta família, pertencente a um povo que resiste e vê
sangue jorrar em suas terras, desde a colonização até agora, quando o
projeto de desenvolvimento do país os condena à luta com fazendeiros e
à morte por envenenamento por agrotóxico

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

REFLEXÕES SOBRE O CAPITALISMO PUTREFATO

Admira-se um ser pensante como o Celso, que de alguma forma mostra a degeração da humanidade, em vista disso, as citações são perfeitas e os comentários dispensa cometários.


REFLEXÕES SOBRE O CAPITALISMO PUTREFATO
Por Celso Lungaretti

No artigo 'Temos que abandonar o mito do crescimento econômico infinito', escrito para a BBC, o professor Tim Jackson, da Universidade de Surrey, resume as teses que vem defendendo desde 2006 e sistematizou em sua conhecida obra Prosperity without Growth - Economics for a Finite Planet (Prosperidade sem Crescimento: Economia para um Planeta Finito), lançada no final de 2009.

O diagnóstico é correto, mas, como bom schoolar do sistema, ele não o leva até as últimas consequências. Vamos ao que interessa (trechos):

"Nas últimas cinco décadas, a busca pelo crescimento tem sido o mais importante dos objetivos políticos no mundo.

A economia global tem hoje cinco vezes o tamanho de meio século atrás. Se continuar crescendo ao mesmo ritmo, terá 80 vezes esse tamanho no ano 2100.

Esse extraordinário salto da atividade econômica global não tem precedentes na história. E é algo que não pode mais estar em desacordo com a base de recursos finitos e o frágil equilíbrio ecológico do qual dependemos para nossa sobrevivência.

Na maior parte do tempo, evitamos a realidade absoluta desses números. O crescimento deve continuar, insistimos.

As razões para essa cegueira coletiva são fáceis de encontrar.

O capitalismo ocidental se baseia de forma estrutural no crescimento para sua estabilidade. Quando a expansão falha, como ocorreu recentemente, os políticos entram em pânico.

...Questionar o crescimento é visto como um ato de lunáticos, idealistas e revolucionários.

Ainda assim, precisamos questioná-lo. O mito do crescimento fracassou. Fracassou para as 2 bilhões de pessoas que vivem com menos de US$ 2 por dia.

Fracassou para os frágeis sistemas ecológicos dos quais dependemos para nossa sobrevivência.

...Os dias de gastar dinheiro que não temos em coisas das quais não precisamos para impressionar as pessoas com as quais não nos importamos chegaram ao fim.

Viver bem está ligado à nutrição, a moradias decentes, ao acesso a serviços de boa qualidade, a comunidades estáveis, a empregos satisfatórios.

A prosperidade, em qualquer sentido da palavra, transcende as preocupações materiais.

Ela reside em nosso amor por nossas famílias, ao apoio de nossos amigos e à força de nossas comunidades, à nossa capacidade de participar totalmente na vida da sociedade, em uma sensação de sentido e razão para nossas vidas".

TRABALHO HUMANO JOGADO NO RALO

Faltou Jackson explicar melhor por que "o capitalismo ocidental se baseia de forma estrutural no crescimento para sua estabilidade".

Em meados do século retrasado Marx já esgotava esta questão.

A contradição entre a produção coletiva e a apropriação individual gera um permanente desequilíbrio entre a oferta e a procura, já que os produtores não temos capacidade aquisitiva para adquirir tudo que produzimos. Fica faltando aquela parte dos frutos do nosso trabalho que é usurpada pelo capital, a mais-valia.

Para evitarem-se aquelas crises terríveis de excesso de produção (escassez de consumidores, na verdade), a economia capitalista se voltou cada vez mais para o parasitário, instituições financeiras à frente; o suntuário e a indústria bélica. São formas de se jogar no ralo o trabalho humano sem proveito para a humanidade, muito pelo contrário.

Afora os mecanismos de crédito que vão empurrando o acerto das contas cada vez mais para a frente, permitindo aos consumidores adquirirem o que não podem bancar, até que o elástico arrebenta e vêm as recessões.

Não há como sanar-se a irracionalidade econômica do capitalismo -- é ela que o condena à extinção. Ou nos condena, se não conseguirmos escapar de suas garras em tempo.

A expansão econômica apenas adia o desfecho para o qual suas contradições apontam, ao custo de comprometer cada vez mais "os frágeis sistemas ecológicos dos quais dependemos para nossa sobrevivência".

Então, mudar este foco não é uma questão de convencer as pessoas a abdicarem do consumismo em prol do amor familiar. A lógica perversa do sistema, martelada dia e noite por sua nefanda indústria cultural, vai exatamente na direção oposta.

Sob o capitalismo, nem mesmo a substituição do transporte individual pelo coletivo está sendo implementada como deveria, embora cada automóvel novo que sai da fábrica seja mais um prego em nosso caixão.

Então, uma "prosperidade" que "transcede as preocupações materiais" só será possível quando as motivações maiores dos seres humanos deixarem de ser a ganância e a busca da diferenciação, trocadas pela cooperação solidária e pela priorização do bem comum.

Em outras palavras, quando o homem despertar do pesadelo capitalista.

Texto retirado do Blog de Celso Lungaretti - http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/2011/10/reflexoes-sobre-o-capitalismo-putrefato.html

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Lamento - Comunique-se - Sem entrevista: Político tira microfone de repórter de afiliada da Globo e a intimida ao vivo

Por Silvana Chaves

Era uma tarde fatídica para a repórter Bianca Rosa. Ela, que trabalha para a EPTV, afiliada da Rede Globo em Campinas, estava na rua com a equipe de produção fazendo uma matéria a respeito de peças de motos que passaram a ser obrigatórias no trânsito da cidade.

Ao passar pelas ruas campineiras, porém, ela teve uma surpresa. “Estávamos passando de carro pela rua quando o nosso câmera que estava no banco de trás deu uma olhada na rua e comentou: ‘aquele ali não é o Lagos?’. A gente a princípio teve até um pouco de dificuldade para ver, porque estávamos no carro e ele (Francisco de Lagos ex-coordenador de Comunicação da prefeitura de Campinas, que está sendo investigado pelo Ministério Público (MP) por corrupção, formação de quadrilha e irregularidades na gestão) estava mais magro, abatido. Quando tive certeza que era ele, descemos, o câmera e eu, no meio da rua, deixamos o motorista no carro e o seguimos. Ele entrou numa ruazinha, parou na frente de um comércio e começou a conversar com um homem. Tanto é que, quando a gente chegou, ele estava de costas e tomou um susto. Ele ficou sem reação, estático e daí colocou a mão na câmera, para que não o filmássemos”, contou a jornalista ao Portal Comunique-se.

Essa poderia ser apenas mais uma típica cena de uma pessoa que não gosta ser filmada. Porém, Francisco de Lagos não é um homem comum. Ele é apenas o homem mais procurado pela imprensa de Campinas

Vídeo do encontro entre Lagos e os repórteres Bianca Rosa e Márcio Silveira na íntegra:

“Não me filme!... Você não tem o que gravar comigo!”


A repórter da EPTV Campinas explica que o relacionamento do ex-coordenador com a imprensa sempre foi complicado. “Ele não tem fama de muito gentil. Desde a época em que ele era secretário, ele nunca soube lidar com a imprensa. E esse fato expôs esse comportamento dele que até então era mais de bastidores, que não tinha chegado ao conhecimento da população a dificuldade que a imprensa tem para conseguir falar com ele", comenta.

Com o vídeo mostra, Lagos, aparentemente irritado com a presença da imprensa, arranca o microfone do cabo e das mãos da repórter e sai andando. Em seguida, tenta atacar a câmera, impedindo que sejam capturadas imagens dele.

O momento mais tenso do encontro, segundo a repórter, foi o momento em que a filha censura o pai frente às câmeras. “Na hora em que a filha dele gritou, mandando ele calar a boca e devolver o microfone que ele havia tomado de mim, a tensão chegou ao auge. Eu fiquei receosa. E ele ficou sem reação, olhando para ela. E é claro que eu, nós, tínhamos que ir atrás dele. Fiz o meu papel de deixar ele falar, de ouvir o que ele tem a dizer a respeito das investigações do Ministério Público, porque ele mesmo nunca se pronunciou à imprensa. E todo mundo quer ouvir o que ele tem a dizer, mas ele não quis falar, tomou o microfone da minha mão, se descontrolou. Em momento nenhum fui desrespeitosa ou mal educada com ele. Apenas pedi o microfone de volta ”, afirma Bianca.

Assista a matéria editada, que foi exibida no Jornal Regional, da EPTV Campinas, nesta terça-feira (2/8)

 
Ex-foragido

Lagos está envolvido em denúncias de corrupção na Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento S/A (Sanasa), além de ser acusado de tentar atrapalhar o trabalho do MP, criando situações para adiar o depoimento da primeira-dama municipal e ex-chefe de Gabinete, Rosely Nassim Jorge Santos.

Segundo reportagem publicada na página da EPTV, as denúncias de supostas irregularidades que envolvem o ex-secretário e contratos com a empresa Normandie Comunicação Ltda, que pertence ao ex-genro de Lagos, alvo de uma auditoria na prefeitura.

Ele era integrante do alto escalão da prefeitura, mas foi exonerado do cargo na administração municipal no dia 24 de maio deste ano. Lagos já teve a prisão decretada duas vezes por formação de quadrilha a pedido dos promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), que além desta, investigam irregularidades em diversos vários contratos firmados durante as gestões do prefeito Hélio de Oliveira Santos (PDT). Nas duas vezes, Lagos fugiu da Justiça.

Agressões gratuitas

Casos de intimidações e agressões a jornalistas no exercício da profissão por políticos não são incomuns no Brasil. O mais recente se refere ao senador Roberto Requião (PMDB-PR) que irritado, tomou o gravador da mão do repórter Victor Boyadjian, da Rádio Bandeirantes, após o jornalista ter perguntado a respeito da aposentadoria vitalícia que ele recebia como ex-governador. De acordo com o Senado, não houve falta de decoro por parte do parlamentar ao arrancar o gravador da mão de jornalista, em abril deste ano.

Outra situação que indignou jornalistas foi a agressão feita à repórter Márcia Pache, da TV Centro Oeste - afiliada do SBT em Mato Grosso -, pelo então vereador de Pontes e Lacerda-MT, Lourivaldo Rodrigues de Morais (DEM), conhecido por Kirrarinha. Em junho do ano passado, a emissora gravou o momento em que o político dá um tapa na repórter, que lhe fizera uma pergunta dentro de um prédio da polícia. Mesmo tendo respondido a processo, Kirrarinha foi eleito presidente municipal do DEM em julho deste ano. A repórter, no entanto, é quem vive uma prisão, sem poder sequer andar pela cidade com os filhos sem ser ridicularizada.

Origem: http://www.comunique-se.com.br/index.asp?p=Conteudo/NewsShow.asp&p2=idnot%3D59358%26Editoria%3D8%26Op2%3D1%26Op3%3D0%26pid%3D116092844176%26fnt%3Dfntnl

segunda-feira, 25 de julho de 2011

CHAME O LADRÃO! Por Celso Lungaretti em 23.7.11

"Acorda amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição
Era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa, santa criatura
Chame, chame, chame lá
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão"

Alvo preferencial das tesouras da ditadura militar, o sempre criativo Chico Buarque bolou em 1974 um estratagema para suas composições não serem obsessivamente dissecadas pelos censores, sempre à procura de pêlo em ovo: passou a enviá-las às donas solanges da vida com a assinatura inventada de Julinho da Adelaide.

A artimanha deu tão certo que até uma entrevista do tal Julinho foi publicada na Última Hora, conforme se vê aqui.

É óbvio que o segredo não duraria muito. Mas, permitiu que se tornassem bem conhecidas "Jorge Maravilha" ("E como já dizia Jorge Maravilha/ Prenhe de razão/ Mais vale uma filha na mão/ Do que dois pais voando") e "Acorda Amor".

Esta última é uma limonada feita com o limão do pesadelo que assombrava a todos nós, opositores do arbítrio: o da campainha soando no meio da noite, para anunciar que iríamos ser sequestrados, torturados, mortos.

[Dois anos depois de sair das prisões militares, fui despertado em plena madrugada por alguém que dizia estar procurando uma determinada família. Alegou saber a posição do apartamento mas não o andar, de forma que, começando pelo 21º, estaria acordando os moradores dos apês de final 3, um após outro. Nunca soube se era verdade ou, o mais provável, uma verificação policial. Mas, ao abrir a porta já me preparava para o pior. E depois não consegui pregar o olho...]

Chico/Julinho fez humor em cima do horror, ao destacar a inversão de valores: a polícia transformada em ameaça e o ladrão, em defensor.
Foi o que me acorreu, ao ler que as duas principais associações de juízes brasileiros saíram em defesa de José Antonio Dias Toffoli, ministro do Supremo Tribunal Federal que ausentou-se de uma sessão de julgamento para viajar à ilha de Capri, na Itália, onde participou da nababesca festa de casamento de um grande advogado.

Ou seja: para ambas, nada existe de errado em faltar no trabalho por motivo banal e em, possivelmente, ter suas despesas de hospedagem e deslocamentos bancadas por quem atua como criminalista em dois processos dos quais Toffoli é relator (o cabulador de julgamentos garantiu ter pagado do seu bolso as passagens aéreas, negando-se, entretanto, a falar sobre os demais custos -- mesma atitude do anfitrião Roberto Podval).

"Os casos de suspeição previstos em lei são referentes apenas a relação de amizade íntima ou inimizade capital entre o magistrado e a parte e jamais em relação ao advogado", afirmou, em nota, o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil, Gabriel Wedy, esquecendo-se de discorrer sobre os casos de suspeição previstos na ética.

"O caso não tem essa gravidade. Juízes, promotores e advogados convivem a vida toda", disse Nelson Calandra, da Associação dos Magistrados Brasileiros, repetindo a ladainha dos políticos acusados de corrupção: "todo mundo faz igual".

Trabalhando em comunicação empresarial, eu cheguei a editar o jornal que uma multinacional farmacêutica enviava aos médicos. O sucesso da linha de produtos da empresa dependia inteiramente que os doutores os indicassem a seus pacientes. Daí os frequentes convites para que os discípulos de Hipócrates (ou não passariam de hipócritas?) curtissem agradáveis fins de semana em cruzeiros marítimos, com todas as despesas pagas.

Eu era obrigado a noticiar com destaque e muitas fotos tal absurdo, para despertar nos não convidados a vontade de fazerem por merecer o convite na vez seguinte. E as associações de médicos também nada viam de errado em tal prática.

Chame, chame o ladrão, chame o ladrão!

Texto retirado do Blog: http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/2011/07/chame-o-ladrao.html